Em 2006, eu dava aulas no colégio La Salle e um aluno, desde o começo, chamou a minha atenção. Lucas Mansur não me parecia ser, definitivamente, o maior interessado em Literatura Brasileira. Sim; ele era um bom aluno, prestava atenção, ia bem nas provas. Mas, como qualquer professor, conseguimos ver um pouco das paixões que os alunos possuem e isso inclui perceber o tipo de matérias com as quais eles têm mais afinidade.
O ano foi passando e Lucas foi ganhando cada vez mais a minha simpatia. Ele era esforçado e obstinado. Percebi que gostava de desafios, afinal ele era obcecado por sempre ganhar o número máximo de estrelinhas nas provas. E, sendo muito dedicado a alcançar suas metas, o Lucas sempre se superava. Foi quando comecei a brincar chamando-o de aluno preferido e ele me retribuía, chamando-me professora favorita.
De qualquer modo, eu me recordo de que, no segundo semestre de 2006 eu passei um trabalho para meus alunos a fim de cobrar deles a leitura do livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Como eu falei na última postagem, Machado de Assis e Clarice Lispector são meus autores prediletos. Não pretendo expor de uma vez o porquê dessas paixões; deixarei para ir falando aos poucos. Contudo, aproveito o momento para trazer meu Machado à cena, por meio desse aluno que tanto me marcou.
O trabalho consistia em fazer uma releitura, uma leitura própria do livro. Ora, não é exatamente esse o meu objetivo, sempre? Não me interessa que meus alunos leiam por obrigação, eu quero que eles descubram algum prazer nisso, eu preciso que ele descubram algo de novo, principalmente a respeito deles mesmos, ao ler.
Por isso, eu explorei com eles o fato de que “Dom Casmurro” é uma obra consagrada, mas não pela eterna e famosa questão de Capitu ter traído ou não. O fator psicológico é o que há de mais incrível nesse livro, mostrando, a quem lê, a diversidade de pontos de vista acerca de uma mesma situação. Fiz com que eles mergulhassem nessa leitura, tão interessante, em que eles devem se colocar no lugar do personagem, para tentar compreendê-lo, na mesma medida em que deve permanecer de fora, na tentativa de serem imparciais, detetives, psicólogos...
Com essa finalidade, eu pedi que lessem o livro e, claro, compreendessem a obra, suas implicações e tudo aquilo que se espera de um aluno do Ensino Médio. Mas, como um trabalho especial, eu pedi a eles que me escrevessem a história, resumidamente, é claro, dentro da perspectiva dos outros personagens. Se, ao longo dessa primeira leitura, embarcamos na ótica de Bentinho, como seria essa mesma história, se contada por Capitu, Escobar ou Ezequiel?
Assim, eu estava propondo a eles uma forma mais interativa de trabalhar com a obra. Lembro de os alunos terem se animado, afinal era algo diferente. Eles escreveriam sua versão (embasada, é claro, em tudo que o livro pudesse proporcionar) e, desse modo, ficariam mais próximos de um grande escritor como Machado. Em grande parte, a ideia era essa. Não acho que seja necessário que meus alunos vejam esses autores como seres de outro planeta. Antes de tudo, eles foram pessoas que tiveram uma ideia, um sentimento, algo a dizer e expuseram em papéis, concretizando em palavras alguma coisa que existia dentro deles e que precisava ganhar o mundo.
É claro que isso não significa desvalorizar esses nomes. Sempre deixei nítido para os meus alunos (talvez até demais) o quanto eu adoro Machado de Assis, o quanto esse autor me inspira, o quanto a análise do ser humano que ele faz é tão absurdamente incrível a ponto de me deixar atordoada quando o leio. Entretanto, penso que aproximar meus alunos desses autores, dessa maneira, seja justamente o caminho para que eles possam compreender seu real valor e significado. Guardadas as devidas proporções, ao tentar escrever como eles, colocando-se em seu lugar, eles percebem mais claramente o que esses grandes nomes realizavam ao construir obras fantásticas.
Pois muito bem, deixando evidente para eles quão altas eram minhas expectativas em relação a esses trabalhos, por envolverem uma das principais obras de um de meus autores mais queridos, permiti que trabalhassem. Ansiava, não posso negar, pelo resultado.
Quando finalmente recolhi os trabalhos, estava curiosíssima. Em casa, não perdi tempo para começar a ler o que haviam aprontado esses meninos.
E eis que o trabalho do aluno Lucas Mansur me chamou a atenção. Em primeiro lugar, ele escolheu falar de Capitu, como se ela houvesse enviado cartas à sua amiga Sancha. Assim como Bentinho teria produzido um livro para registrar sua história, ela o teria feito por cartas. O trabalho, em si, já chamava a atenção visualmente. Seu trabalho eram cartas, em que se percebia o trabalho de envelhecê-las. O papel, queimado nas bordas, amarelado por meio de uma técnica que nem sei qual foi, tinha as letras cursivas bem desenhadas, carimbo com cera de vela, toda uma preocupação em fazer das cartas documentos que lembrassem o século XIX.
Essa parte já me tinha chamado a atenção, mas o conteúdo, ainda mais. Em cartas bem pontuadas, que tiveram o cuidado de situar exatamente a época de cada momento crucial do livro, Lucas recontou a história pela ótica do outro, pela visão de Capitu. Eu tinha dado a eles liberdade de escolher se queriam que Capitu tivesse traído ou não, contanto que apresentassem esse ponto de vista bem fundamentado.
As cartas de Capitu, do aluno Lucas, seguiram criteriosamente o que eu havia pedido. Não deixaram a desejar. Vou colocar as quatro cartas aqui, para que possam ver por si só (a fim de um maior entendimento e compreensão, seria interessante ter conhecimento da obra “Dom Casmurro”, para poder apreciar devidamente o trabalho do aluno):
“Rio de Janeiro, 20 de Abril de 1865
Querida Sancha,
Aproxima-se o fim do primeiro mês de meu casamento com Bentinho. Sinto-me tão feliz que achei necessária a escrita dessa carta. As palavras faladas podem e têm importância absurda, mas a escrita é uma forma de prolongar ou até mesmo eternizar o que foi pensado. Durante nossas meninices, sempre trocamos juras de um sentimento que só poderia resultar nesse casamento, mas confesso que cheguei a acreditar que assim não seria. Algumas vezes olhei para outras pessoas pensando que a promessa de que só me casaria com Bentinho poderia não ser cumprida. Existe muito amor de minha e, principalmente, da parte dele. Completamo-nos como amantes e como amigos. Sei que não interessa detalhes, mas nossa intimidade, amiga, nos permite. O corpo de meu esposo e o meu formam um só. Quem diria que aquele menino tímido, religioso, cheio de cautelas, que não sabia mentir e que emudeceu ao primeiro beijo, fosse me completar e fazer tão feliz como sou?! Feliz como pessoa, feliz como mulher. Só nos falta um herdeiro para sacramentar essa união, para deixar um regalo a todos. Um filho para que, quando não estivermos aqui, possam apontá-lo e dizer: “este é o fruto do amor de um homem e uma mulher que nasceram um para o outro”. Já me sinto acanhada com essa carta, no entanto, confio em sua discrição.
Abraços.
Capitolina.
Rio de Janeiro, 05 de Abril de 1871
Querida Sancha,
Há quase seis anos que nos habituamos a corresponder confidências que nos saem com mais leveza pela escrita. Tantas coisas boas aconteceram nesse período! Normalmente, confidenciamos felicidades, dúvidas e, nas piores situações, rixas e discussões bobas com nossos maridos. Mas desta vez, temo deixar que alguma lágrima borre o que a pena escreve. Pouco tempo se passou da morte de nosso amigo e de seu esposo, o especial Escobar. Ao ler esta carta, já deverá estar a caminho do Paraná. Concordo que nossa família é o melhor apoio para qualquer momento, mas deixo clara a falta que me fará. Desejo toda a felicidade a você e sua filha, que a dor da perda transforme-se logo em saudade. A partida de Escobar pegou a todos de surpresa. Bentinho está mudado desde o enterro. Alimenta-se pouco, comunica-se menos ainda. Ezequiel já percebeu a tristeza que tomou conta de seu pai, e ele também sente falta de Escobar. Todos sentem, aliás! Espero que, ao chegar, responda-me contando como está seu Paraná, sua família e seus sentimentos. Certamente, ainda estará com a dor no peito, mas a sua dor, a dor de Bentinho, a minha dor e as de nossas crianças passarão brevemente.
Felicidades!
Capitu.
Rio de Janeiro, 10 de Fevereiro de 1872
Sancha,
Fiquei muito feliz com sua última carta. É bom saber que está refazendo sua vida. Com o tempo, quem sabe um novo amor não venha a preencher seu coração? Tudo sem muita pressa, para que a dor cicatrize de vez. Eu, infelizmente, não tenho tido muito o que comemorar. Ainda não sei qual é o problema, mas os sintomas ferem a mim e a Ezequiel. Bentinho está muito mudado! Anda calado e triste pelos cantos, me trata friamente e até seu filho está sendo deixado de lado. Indaguei a ele o que está a acontecer, mas não responde sinceramente. Bentinho nunca soube mentir! Agora penso em colocar Ezequiel em um colégio interno, para que volte para casa apenas aos finais de semana. Não é a excelente educação dada pelo colégio que me fez ter essa ideia, e sim o que posso ver nos olhos de Bentinho: uma repulsa por nosso filho. Que sempre foi ciumento, sabemos, mas chegar ao ponto de não aceitar que eu divida a atenção entre ele e nosso filho chega-se (?) ao egoísmo e possessão. O pior é que nada disso foi ele quem me falou, tudo é a conclusão tirada das muitas horas que perdi tentando achar um porquê para a mudança do homem doce e atencioso com quem me casei. A morte de Escobar poderia ser uma resposta, porém aí a relação com Ezequiel deveria ser mais estreita e amorosa. Meu filho, com aquele hábito de copiar as pessoas, tomou para si traços de seu falecido esposo. Teria algo melhor que um filho recordar-lhe um amado amigo? Bem, espero que na próxima carta já possa lhe contar coisas mais felizes. Não esqueça que a vida segue.
Com saudades,
Capitu.
Suíça, 18 de Agosto de 1890
Sancha,
Gostaria de começar esta que deve ser minha última carta pedindo desculpas. Não tive coragem de responder sua carta há mais de dezoito anos atrás. Hoje, nem sei se ainda vive. Espero que sim e que viva com saúde. Quanto a mim, creio que não devo ficar nesse mundo por muito tempo. Não respondi sua carta porque descobri o que fez Bentinho mudar tanto comigo e nosso filho. Meu marido começou a ver semelhanças em Ezequiel que o remetia a Escobar. Passou a repensar sobre sua vida e me julgou culpada. Tinha em sua mente a certeza de que eu e seu marido, amiga, teríamos traído a ele e a você. Hoje a Europa pode ver que bonito moço meu filho se tornou. Seu pai não nos visita há muito tempo, e se hoje o visse, tenho certeza de que o que ele pensou se confirmaria. Minha amiga, peço-lhe mil desculpas. Há muitos anos atrás, cometi um pecado de que ainda tento me perdoar. Não conseguia ter um filho com meu recém-esposo. Minha vida era boa, mas não completa. Em um ato impensado, fiz-me atraente para seu marido, que não resistiu. Culpamo-nos por muito tempo. Principalmente, ele. Quando tive a certeza da gravidez, afirmei ser de Bentinho o filho, apesar de incerta. Com o tempo, essa certeza veio a Bentinho e a mim. O que fiz não tem perdão, mas tem justificativas. Não queria trair sua amizade, nem o amor de meu esposo. Talvez tenha feito justamente por amá-lo tanto. Depois de minha morte, Ezequiel deve voltar ao Brasil. Bentinho terá a certeza de sua dúvida, contudo o acolherá. Se eu pudesse voltar ao tempo, talvez não fizesse isso. Digo talvez, por saber que o amor me daria coragem de fazer tudo que julgasse o melhor para mim e para Bentinho. Sancha, se puder, perdoe-me.
Um beijo,
Capitu.”
Fiquei comovida com o trabalho. Lembro-me de mim mesma, com uma caneca de café e a caneta na mão, dedos tamborilando na superfície branca da mesa, óculos postos e meus olhos perdidos nessas cartas, que pareciam repousar sobre a mesa, tão leves e tão certas de que mereciam ser apreciadas.
E foram.
Obrigada, Lucas. Por me confirmar como é gratificante ser professora.
A quem se interessar, Lucas Mansur pode ser encontrado no twitter como @lucasmansur.
Até a próxima, pessoas! o/