terça-feira, 24 de julho de 2012

Paradoxos literários

A autora do poema a seguir é a Lara Nogueira, uma aluna do curso pré-vestibular que me pediu, por algumas vezes, que desse uma olhada nos poemas que ela escreve.

Embora já tivesse tido tempo para acessar seu blog e constatar seu talento, apenas agora pude enfim prestigiá-los como eles merecem.

Conforme poderá ser visto abaixo, a Lara tem uma alma sensível e talento com as palavras. Em um poema, essas são qualidades que me atraem bastante. Poemas são muito subjetivos e o que faz uma pessoa apreciar um determinado texto não necessariamente é válido para outrem. No caso dos poemas da Lara, eu fiquei fascinada ao descobrir que ela produz exatamente o meu tipo preferido de poesia.

Tenho clara preferência por poemas que instigam, que deixam subentendido e que conseguem, nessa omissão poética, dizer mais que qualquer outra palavra seria capaz. Lacunas mais expressivas que palavras; eis um paradoxo que eu adoro.

Por sinal, paradoxos são interessantíssimos e também sempre me chamam muito a atenção. Adoro textos que aproximam opostos, transformando o impossível em crível. Transformar opostos em complementos, às vezes quase fazendo com que sejam sinônimos, é habilidade que se alcança com alguma prática porque, apesar de parecer fácil, essa é uma tarefa extremamente complexa. Um dos clássicos exemplos é quando demonstram que amor e ódio são muito mais próximos do que aparentam. Afinal, esses dois sentimentos tão intensos comprovam que, quando sentidos, o alvo deles é sempre alguém de muita importância na vida da pessoa que ama ou odeia...

A Lara, entretanto, resolveu seguir um caminho menos usual. Em vez de opor amor e ódio, ela opôs amor e medo. Esses dois sentimentos não são necessariamente opostos, mas, em muitas situações, tornam-se impeditivos um do outro, impedindo a existência do outro.

O título do poema que eu escolhi para divulgar aqui é "Amor e Medo". Na mesma hora, eu me lembrei do poema de mesmo título escrito por Casimiro de Abreu - e que é um dos meus preferidos. No poema do Casimiro, as palavras giram em torno dos impedimentos que esses sentimentos geram um ao outro e é belíssimo, de modo que, ao ler o título do poema da Lara, imaginei que fosse me deparar com algo semelhante.

Porém, qual não foi a minha surpresa quando percebi que minha aluna foi além? Em seus versos, ela usa poucas palavras, fazendo um inteligente jogo de palavras. Essas são outras características que muito me atraem e que a Lara utilizou de forma impecável.

A Lara começa já de uma forma que considerei impactante. Ao escrever que as pessoas são definidas por medo ou amor, ela traçou a linha mestra do seu texto, demonstrando que todos vivem, de uma forma ou de outra, norteados por esses sentimentos. Às vezes, inclusive, pela mistura dos dois.

O jogo de palavras, como já disse, ficou brilhante e destaco especialmente os versos: "Pelo medo de estar sozinho./Por estar sozinho por medo."

Contudo, o fechamento do poema é que nos traz uma sensação estranha, daquelas que nos deixa um tanto perdido, sem chão sob os pés. Eu gosto de poemas que se fecham sem fechar, que, na verdade, ao terminarem abrem portas, levam a reflexões diversas de uma forma quase impositora. Textos que, fugindo da obviedade, exigem uma leitura que continue, que vá além do fim, que permaneça mesmo depois de a leitura concreta findar-se.

Ao definir-se pela indiferença, terceiro sentimento trazido ao texto, a autora se coloca à parte da sociedade que ela apresenta nas primeiras linhas. E se mostra dona de um dos sentimentos mais perigosos, ao meu ver. Pior que o ódio, é a indiferença. Afinal, quando existe um sentimento inflamado como o ódio, ainda existe vida. Não que o ódio seja bom; claro que não. Todavia, se ainda há vida, é possível transformar.

No entanto, quando há a indiferença, indiferença ao amor, indiferença ao medo, então há o nada. É um poema de seca melancolia. Vazia dos sentimentos mais fortes e impetuosos, representados pelo amor, e também de sentimentos fracos e covardes, representados pelo medo, o eu lírico do texto se posiciona em um não-lugar.

O que a levou a esse anulamento? Teria ela alcançado um equilíbrio dos dois opostos que, em igual medida, terminaram por se excluir? O que a levou à indiferença? Amor demais? Medo demais? A mistura de ambos?
Ou terá o eu lírico jamais experimentado de fato esses sentimentos?

Amor e medo equiparam-se; pois mesmo estando em lado diferentes, são igualmente intensos. Sendo assim, onde se encontra o eu lírico? Acima ou abaixo desses sentimentos? É melhor ou pior ter chegado a esse ponto?

Questionamentos que não necessitam de resposta. Eu gosto de poemas que não precisam de respostas. Muitas vezes, melhor que ter todas as respostas, é ter as oportunidades de pensar e refletir, pelo ato em si. A chegada ou não a uma conclusão é apenas consequência, que se torna mínima diante de todos os outros frutos nascidos desse delicioso passatempo.

Abaixo, deixo o poema na íntegra. Desfrutem:

"Amor e Medo


Vocês são definidos pelo medo ou pelo amor.
Pelo medo de amar.
Pelo amor de dar medo.
Pelo vicio no amor.
Pelo vicio no medo.
Pelo medo de quebrar a rotina.
Pela rotina de estar com medo.
Pelo medo de estar sozinho.
Por estar sozinho por medo.

Eu me defino pela indiferença.
Indiferença ao amor.
 Indiferença ao medo."


Para quem quiser conhecer a autora, podem encontrá-la no Facebook: procurem por Lara Nogueira. E, para ler os outros poemas dela, visitem o seu blog:


Obrigada pela inspiração, Lara!!! 

E vamos seguindo! Em breve, vou divulgar uma novelinha produzida por uma aluna no primeiro ano e, depois, o poema de um aluno que era inseguro com suas palavras, mas me demonstrou que tinha um talento absurdo com elas!

Continuem acompanhando! ;)


segunda-feira, 11 de junho de 2012

Estação: Poesia


A aluna Letícia Leal havia me dito pelo Twitter, há algum tempo, que desse uma olhada no blog que ela escreve. Não foi com surpresa que fiquei então sabendo que ela escrevia; a Letícia faz parte desse grupo de alunos em que, sem muita dificuldade, é possível entrever o talento latente. Nas aulas de Literatura, é sempre possível notar como os olhos de certos alunos se iluminam com um poema, com algumas linhas inspiradoras, com as palavras certeiras de algum escritor. A Letícia faz parte desse grupo.

Entretanto, somente agora eu tive tempo de me debruçar sobre o trabalho dessa aluna. E, com uma agradável surpresa, deparei-me com uma série de poemas escritos por ela.

Poesia é mágica. É encantamento. E algumas pessoas, como a Letícia, possuem um dom fora do sério para envolver pessoas com sua magia. Fiquei fascinada pelo talento da garota.

Em verdade, preciso dizer que estou absurdamente satisfeita por descobrir tanto talento nos meus alunos, como vem acontecendo. É impressionante, é incrível, é uma honra poder entrar em contato com essa outra face deles.

O que me atrai no mundo da Literatura é esse abrir de portas, é esse conhecer de novos mundos, de outras realidades. Eu acredito que o ser humano precisa dessa capacidade de sonhar, de viver outras vidas, de ser mais do que somente ele mesmo. É claro que não há problema algum em viver sua vida e gostar dela como é – na verdade, é o que se espera que aconteça. Porém, o sonho é sempre um algo a mais que não podemos nos negar a viver. E agora que venho entrando cada vez mais em contato com os outros mundos desses alunos, eu passo a enxergá-los de formas várias e diversas.

No caso de Letícia, seus textos remetem a diversos estados de espírito que são dela, só dela. São seus gritos de dor, reflexões obscuras, pensamentos variados, alegrias inocentes, tristezas indizíveis, contentamentos supérfluos, suspiros profundos. Aquele que os lê pode tentar se identificar com alguma sensação ali exposta, mas nunca será o mesmo sentimento. O que sentimos, apenas nós sentimos. E, numa falsa tentativa de comunicação, escrevemos, na busca de dialogar sobre o que somos. Mas isso não é possível. O que somos, pertence apenas a nós. O outro, encantado, pode chegar a crer que se sente igual, mas é emoção imitada, não original.

A literatura traz muito de emoções que se querem imitar. Muitos acreditam nessa imitação. Contudo, é importante conhecer a verdade dessa ilusão. O que o autor escreveu, o que ele sentiu, pertencerá apenas a ele. Aos leitores, cabe a tentativa de se colocar em seu lugar e, dependendo da capacidade de sensibilidade, pode quase conseguir. Engana-se bem na Literatura e nada há de errado aí. A Literatura é sonho, sonho é ilusão.

Na poesia, é mais difícil iludir-se. Entenda-se: poesia também é literatura, claro. Porém, nela, os sentimentos são tão pertencentes à voz do poema que é mais complicado acreditar que eles são seus também. Os poemas líricos voltam-se com força para o eu poético. Sejam sentimentos do próprio autor ou do personagem que ele incorporou, o fato é que os sentimentos são fortes e únicos. Há muitas palavras para se dizer o que se sente, entretanto as palavras sempre parecem faltar. O poeta aprendeu há muito sobre a brilhante tarefa das lacunas a serem deixadas. Lacunas que preenchem, que dizem mais que qualquer palavra. Jogar com palavras e silêncios, criando um ritmo próprio, em um diálogo consigo mesmo, é tarefa literária muito própria da poesia. A poesia é muito egocêntrica. Por mais que seja capaz de atingir muitos outros, ela será para sempre única àquele que a criou.

A prosa se explica. Faz mais sentido. É possível explicar-se paragrafalmente. O difícil é fazê-lo em versos. Afinal, o verso não parece ter sido criado para explicar. O verso tem muito mais de música que de fala. A prosa é a boa conversa, explanada. A poesia é canção entoada para ser ouvida, não necessariamente compreendida.

É certo que já faz algum tempo que prosa e poesia não se diferem mais tanto assim. Prosa poética. Muito interessante, muito gostosa, é uma pegar daqui e dali, é a mistura do que os dois gêneros têm de melhor.

Só que eu estou aqui querendo falar da poesia em verso, daquela mais fechada mesmo, daquela que talvez só possa significar para aquele que a criou.

Estou falando dos poemas da Letícia. Porque, sim, é essa a impressão que me passam aquelas linhas tão simples, tão desprovidas de qualquer pretensão. Fundo branco. Letras pretas. Sem rebuscamento, sem coisas demais, só aquilo, só ali mesmo, só assim, só para mim – é o que aquelas palavras parecem dizer. A Letícia escreve para ela. E qual o problema? Nenhum. Ela usa e domina palavras para si mesma, a seu bel prazer.

Se ela escreve apenas para si mesma, então por que ter um blog? Por que as pessoas que fazem poemas assim se dão ao trabalho de publicar seus trabalhos? Ora, por que gritamos quando sentimos dor? Por que choramos quando estamos sozinhos? Por que expressamos o que sentimos mesmo quando não há ninguém para ver?

Palavras existem para serem ditas e escritas. E ouvidas. E lidas. Elas estão no lugar certo, com o funcionamento perfeito e pontual no blog da Letícia.

A poesia é muito íntima. As palavras da Letícia dizem muito sobre ela. Mas não iremos conhecê-la em tudo o que ela é apenas porque lemos algumas linhas que ela escreveu. Como poderíamos fazê-lo, se nem ela se conhece por inteiro (e, por isso, ela escreve)? Não; deixemos nosso lado indiscreto, que adora espionar, de fora disso. A aventura de se ler um poema não está em se conhecer o outro. Sim, isso pode acabar acontecendo. Todavia, o melhor é se aprofundar nas palavras que alguém escreveu, tentar imergir nelas. Descobrir-se nelas. Encontrar-se nas palavras, conhecer aquele um seu lado que sequer sabia existir. As palavras despertam.

A Letícia não precisa ter escrito com esse intuito. Porém, aquele que a ler terá sabido fluir pelos seus versos se não tentar entender demais o que ela quis dizer. Muitas vezes, o segredo da poesia é tão somente tentar se encontrar ali. Deixar-se tocar pelos versos, pelas palavras e silêncios ali cravados. Pode ser que se sinta algo semelhante ao que a pessoa escreveu. Ou então, algo inteiramente diverso e, nem por isso, menos verdadeiro.

Vou deixar aqui um poema da Letícia que me despertou todas essas divagações. Era da intenção dela me passar tudo isso? Bom; quem sabe? Isso, na verdade, é o que menos importa.

Leiam de coração aberto. Deixem-se invadir.

Não Há o Fim da Poesia; 02/06/12
Não há o fim 
da poesia
Um poema não se pára com grunhidos
Porquesnkjvvfs
e afhkvfdo.

Nem com blitz cones multas:
um poema inadimplente 
tem um quê de mulher madura

e não se pára a poesia com olhares!
todo estopim de rima
continua, magnético,
como amores de transportes públicos.

Mesmo que arda.

Não há o fim
da poesia
nem quando acaba o amor

os entremeios sentimentalistas
são como o fim do verso
são como o ar
que fica

onde caberia toda a virtude do lirismo e há nada
[como ao final verídico de um filme muito triste
a falta da mentira causa asco
livre de culpa]

e gera uma revolta louca e eterna
até somente a próxima estrofe,
estação ou vida

já que se encomprida
ah!
e que se encomprida
certamente
na próxima estrofe,
estação ou vida. 


Para aqueles que desejarem entrar em contato com a Letícia Leal, seus contatos são:


- Facebook: Letícia Leal.
- Twitter: @letizialea


Ou visitem o blog dela e leiam outros poemas maravilhosos de sua autoria:


Obrigada pela inspiração, Letícia querida!


E vamos seguindo! Pretendo, muito em breve, atualizar com mais poemas (de uma aluna do pré-vestibular) e, logo em seguida, trazer mais um ótimo blog (de uma aluna do primeiro ano).


Continuem acompanhando!
Até a próxima! =)

terça-feira, 5 de junho de 2012

Profusão de cores


Finalmente, após chegar ao fim de uma maratona de provas, posso dar uma atualizada nos meus blogs. Escolhi começar por esse aqui, pois já estava há quase um mês devendo a postagem desse texto à aluna Carolina Pavan. No dia 6 de maio, ela me enviou um texto que tinha escrito para a Bienal do Livro, cujo tema girava em torno da importância dos livros e do poder que eles têm de transformar o mundo. Um tema amplo, mas que, se bem trabalhado, pode se tornar uma belíssima obra de arte.

É o caso desse texto. A Carolina tinha me perguntado se me poderia mostrar a redação que ela havia escrito, tendo em mente o concurso literário da Bienal. Eu disse que ela me enviasse para dar uma olhada e, uma vez mais, um texto chega até mim despretensiosamente para deixar-me deslumbrada e profundamente tocada.

Tenho alunos talentosíssimos, e estou muito feliz por ver que eles estão se mostrando para mim com mais frequência agora. É uma interessante forma de descobri-los mais a fundo, em um mundo que só pertence a eles, e para o qual me sinto agora convidada a conhecer.

É o caso da aluna Carolina Pavan. Excelente aluna, excelente leitora, prova-se também agora uma excelente escritora. Que ela escrevia bem; isso eu já sabia. Eu podia ver pelas respostas em suas provas, sempre tão cuidadosamente escritas. Mas agora descobri uma fantástica habilidade que Carolina possui com as palavras e que me era desconhecida.

A Carolina usa as palavras para pintar.

Esse é um talento que eu admiro demais. Há livros de todos os tipos, histórias de todas as formas, narrativas de todas as cores. A de Carolina é o que eu considero colorida. Ela não descreve, ela pinta um cenário. Aliás, não somente o cenário. A Carolina sabe como pintar sentimentos.

As cores dessa história chegam até o leitor que, despreparado, vê-se súbito envolvido por esse jogo de cores criado por ela. 

É um jogo de cores, é um jogo de luz. Há luz, há sombra, a própria narrativa parece encobrir-se para depois descobrir-se. As cores são fortes e reais, podem ser vividamente sentidas por quem as lê. No início, há muita escuridão, tanto para a pequenina protagonista, quanto para o leitor. É difícil localizá-la, enxergá-la em meio às trevas. E isso não se dá por conta de uma narrativa lacunosa, problemática, que falha em apresentar o ambiente ao seu leitor. Muito pelo contrário, a dificuldade em ver é obra acertada da Carolina. Nós não enxergamos direito, assim como a pequena Elise também não.

O conto, no entanto, parece iluminar-se quando a menina finalmente alcança seu refúgio. E um brilho muito grande, quase estonteante, passa a nos absorver desse momento em diante. De um estado meio confuso, de quem não sabe para onde vai, nós nos vemos, de repente, absorvidos pela leitura daquele momento, o momento de uma vida, o momento de Elise. Ela se envolve pela leitura e nós também. Somos captados assim como ela. Metalinguagem pura.

A confusão perde espaço, passamos a caminhar confiantes pela leitura traçada por linhas agora luminosas. A narrativa segue e cada vez mais nos deixamos cativar. São cores fortes e quentes, contrárias às cores frias iniciais, que nos prendem ao texto. Não é sempre que um personagem nos toca tão rápido. É preciso habilidade com as palavras, intimidade com elas. E é preciso principalmente saber pintar com elas.

O final... não tenho por que revelá-lo antes da hora. Mas peço apenas para que atentem para o jogo de luz criado pela Carolina no final. Atentem para as cores que ela despeja sobre sua frágil protagonista ao término dessa singela história. E compreendam porque, ao cabo de tudo, a sensação que nos fica é de fogo que nos queima por dentro, voraz e impiedoso, necessitado de vir à tona – o que, de fato, ocorre, em nossa face. É fogo que se converte em água. É dor sob forma de lágrima. 

Um sorriso triste pode despontar então. Prova de que nos comovemos, prova de nossa humanidade. Que bom. Objetivo alcançado, Carolina. Ainda somos humanos.

Sem mais palavras a acrescentar, deixo aqui o conto da Carolina Pavan:

“Àquela hora, os furiosos raios de sol não mais machucavam os olhos frágeis de Elise, já que o monte de lixo bloqueava a visão do céu. A menina arrastava uma grande sacola de pano acinzentada, carregada com o resultado de um longo dia de trabalho: latas, restos de comida, brinquedos quebrados e um único e valioso item para a sua coleção. Ao ouvir o estridente som do toque de recolher do lixão, Elise atravessou as estreitas ruelas que não eram obstruídas pelos montes de dejetos e deixou sua sacola na porta da Sala de Contagem, não ficando tempo suficiente para receber as rúpias que ajudariam sua família a comer na semana seguinte. A menina tirou um pequeno objeto da sacola, o colocou embaixo da blusa e se lançou adentrando a escuridão do lixão.
                Ela se esgueirava como um gato em meio às armadilhas e atalhos que conhecia muito bem. Com seus olhos já acostumados às réstias de luz, Elise respirava a mistura de produtos químicos, bolor e esgoto proveniente do chorume que brotava do chão. Com passos firmes e rápidos, ela chegou a um canto do lixão absolutamente desconhecido para os outros moradores.
                A estrutura do lugar parecia uma enorme caçamba de um caminhão abandonado, que ficava na extremidade sul do terreno. Elise entrou arfando devido à sua saúde crítica e à distância do lugar, acendeu sua vela que já tinha sido quase toda consumida por tantas noites em claro e retirou o livro de dentro de sua blusa rasgada. Ele era lindo. Apesar de sua capa de couro já estar tão velha e surrada que não mais se podia ler o título, seu interior transbordava vida e prendia Elise de um modo completamente novo.
                O doce cheiro das aventuras prometidas pelo livro fez o coração da jovem menina pulsar tão rápido que ela teve que levar a mão ao peito para assegurar que ele não iria sair correndo. Risos. Lágrimas. Agonia. Esperança. Elise se lançou com tamanha voracidade ao livro que se assustou ao terminar de lê-lo. Ela sentia um estranho vazio, como se ainda não estivesse pronta para abandonar aquelas frágeis páginas amareladas, mais lindas do que qualquer coisa que ela já havia visto.
                Seus olhos percorreram os quatro cantos da caçamba enquanto ela contava rapidamente a quantidade de títulos que havia adquirido - de modo não convencional – ao longo de seus doze anos. Vinte e um livros. Oito deles vieram juntos, fazendo parte de uma coleção de contos de fadas com a qual tinha aprendido a ler. Três eram romances policiais, dois de suspense, quatro de ficção científica, outros dois de empreitadas épicas, um volume único de um escritor nacional desconhecido e agora um clássico drama literário para compor sua sucinta biblioteca.
                Elise pegou um por um. Olhava a capa, o acabamento, o tamanho das letras e, quando havia alguma, as figuras. Lembrou-se das histórias e de como cada uma delas a havia tocado de forma peculiar, e dispôs os livros em uma firme torre do lado de fora da caçamba. Com os olhos marejados e sua mais recente aquisição presa com força nas mãos frias e magras, Elise foi seguindo o caminho que seus melhores amigos a indicavam, alcançando o ponto mais ato da torre. Ali onde estava, não havia frio, dor, fome ou lixo suficiente que a impedissem de ver todas as cores que formavam a mais orquestrada sinfonia no céu claro de mais uma manhã.
                Elise perdeu a noção do tempo. As únicas coisas das quais tinha consciência eram que havia passado muitas horas em cima de sua pilha de livros - já que o sol estava a meio caminho de se pôr novamente- e de que seu corpo estava extremamente cansado. Ela estava sofrendo de uma fadiga que jamais experimentara antes, mas não podia parar. Elise tinha uma missão.
                Suas pequenas mãos desempilharam um por um os livros, e os colocaram em um carrinho de mão quebrado a menos de 6 metros da caçamba. Antes de sair, a menina reacendeu a vela que tinha se apagado no meio da noite. Ela não sabia exatamente por onde começar, mas seus pés inconscientemente foram se posicionando até que ela chegasse ao velho barraco de papelão situado ao lado do seu. Era de uma família composta por um casal e quatros filhos, todos com os olhos grandes se destacando em meio à magreza descomunal que apresentavam. Elise não ousou incomodá-los. Em movimentos certeiros, tirou a coleção dos oito livros de contos de fadas e os deixou à soleira da porta.
                A menina agiu desse modo por toda a tarde. Deu um livro de suspense ao velho entediado do barracão da primeira rua, um romance policial ao ex-sargento viciado da esquina e um grosso exemplar de Odisséia para a mulher que sonhava com um amor que movesse terras. Distribuiu seus livros até que o carrinho estivesse cheio de memórias, e nada mais do que isso.
                O vento frio que anunciava uma tempestade envolveu Elise, e ela percebeu que já tinha escurecido. Seus pulmões estavam rígidos, seus pés latejavam da longa caminhada, sua cabeça doía. Todas as células de seu corpo clamavam por um descanso merecido, que nunca vinha. Então a menina decidiu se deitar no carrinho, e por um instante, só observar. O breu do céu era estonteante, exatamente igual ao que ela havia lido no seu último livro, na noite anterior. A chuva agora caía raivosamente, como mil agulhas que machucavam seu corpo infantil.
                Ela começou a contar as estrelas que não tinham sido encobertas pelas pesadas nuvens que dominavam o céu. Vinte e uma estrelas sorrindo para ela. Vinte e uma pessoas mais felizes essa noite. Apesar da chuva torrencial, ela conseguia vê-los todos agora. O príncipe. O advogado. O herói grego. O vampiro. O andarilho. Todos os pedaços mais felizes de sua vida estavam ali, em volta dela. Seus fundos olhos não conseguiam mais conter as lágrimas que por tanto tempo guardou, agora quentes contra sua pele suja.
                Seu diminuto corpo tremia, ficando cada vez mais rígido à medida em que a chuva engrossava. Sua respiração já era difícil, mas Elise fazia o possível para ficar acordada ao lado dos personagens que deram vida aos seus tristes dias. A chuva parecia ter ficado mais mansa, mas a dor não tinha diminuído. Elise agora ardia em febre. A lua se demorava a ir embora, como que querendo se despedir da menina que tinha o maior coração que ela já havia visto. Com os primeiros raios de sol e o último suspiro de uma boca que tinha o dom para contar histórias e mudar vidas, o resto de uma vela em uma caçamba abandonada se apagou.”


Sabem, também eu, quando leio um livro, sinto que crio novos amigos. Aqueles personagens passam a fazer parte de mim e eu procuro por eles em momentos diversos da vida. É interessante como um livro passa a ser parte de nós, se soubermos deixar, se nos permitirmos viver cada uma das histórias lidas. 

Os livros podem ajudar as pessoas a terem vidas menos preto-e-branco. Um livro pode mesmo trazer mais cor à vida de alguém. 

Esse é o objetivo desse blog. Quem sabe, com os textos aqui postados, mais pessoas se interessem pelos livros e por tudo o que eles têm a oferecer? ;)

Obrigada pela inspiração, Carolina!

E para quem tiver vontade de conhecer a autora desse belíssimo conto, eis aqui os seus contatos:

- Facebook: Carol Pavan
- Twitter: @pavancarol

E é isso, pessoas! Por hoje é só!

Mas fiquem ligados; pretendo atualizar novamente em breve! Já tenho três outras alunas talentosíssimas que pretendo trazer para o meu blog! 

Então... até lá! =D

sábado, 5 de maio de 2012

Degustação de palavras


Às vezes, despretensiosamente, alguns alunos me mostram textos que escrevem e me pedem alguma opinião. Dessa forma, eu me deparo com outros lados desses alunos e, por vezes, descubro neles talentos impressionantes. É o caso dessa aluna.

Rafaella Litvin é uma excelente aluna, que se destaca pela participação e atenção em sala de aula. Dedicada e esforçada, já era merecedora de muitas formas de admiração. Porém, foi quando ela me enviou esse conto que eu fiquei maravilhada com um talento incrível, que me surpreendeu verdadeiramente.

Nunca subestimei a aluna, tinha plena ciência de que ela era talentosa em diversos aspectos, mas o que li foi surpreendente porque me apresentou uma maturidade literária que eu não esperava encontrar em uma garota tão nova. Aliás, sendo mais correta, eu não esperava um texto tão impressionante que não viesse de alguém com anos de experiência em uma vida literária já bastante desbravada.

Não sei explicar o caso aqui, posso apenas descrever meu estado à medida que ia lendo as deliciosas linhas que compõem esse conto fantástico, de autoria da Rafaella: curiosidade, surpresa, êxtase, meditação.

A pluralidade de significados que seu texto permite só não é maior que a beleza poética das palavras que o compõem. Aliás, é interessante que o título fale sobre devoração de palavras, já que é exatamente o que acontece com quem lê o conto da Rafaella.

O tom de contos de fada com que ela inicia o texto é divertido, traz o tom da leveza que perpassa todo o conto. No entanto, é preciso ficar atento para não se deixar levar tão levianamente por essa leitura aparentemente leve. É preciso ver além, captar a profundidade que frases tão fluidas podem alcançar. Imergimos em seu texto, devaneamos em meio a tantas palavras e não compreendemos a estranha e agradável sensação que esse conto pode nos causar. Para descobri-la, é importante deixar-se naufragar no que há por trás de cada parágrafo.

Não posso, não devo e não vou entregar reflexões prontas acerca do conto da Rafaella. Não; se eu assim proceder, estarei destruindo parte da beleza dele, que reside nesse mistério que as melhores histórias sempre trazem. Há algo de muito belo nos escritos que não entregam, e sim, instigam. Os melhores são aqueles que atiçam, que nos empurram a tentar ver mais, ver além, chegar a algum ponto que nunca antes experimentamos.

O conto da Rafaella nos oferece isso e ainda mais.

Degustemos. 

“A Menina Que Comia Palavras
Rafaella Litvin

     Era uma vez uma menina que vivia de palavras. Palavras de todos os tamanhos e em todas as línguas. A menina gostava de experimentar então quanto mais esquisita e inusitada a palavra fosse, mais satisfeita ela ficava. Quando bebê, a menina comia pouco. Alguns pronomes e artigos e estava saciada. Foi crescendo e exigindo substantivos. Até que na adolescência entrou em uma fase em que só comia verbos. Fez dietas de sim e não e de onomatopeias. Passou a comer parágrafos inteiros em uma refeição.
     O apetite da menina era algo que assustava sua família e amigos. Todos viviam no medo secreto de que a menina acabasse por engolir todas as palavras e eles ficassem sem nenhuma. Diziam a ela que tentasse comer outras coisas. Números, por exemplo, eles eram infinitos afinal. Mas a menina dizia que os números tinham um gosto amargo de falta de significado, e não matavam a sua fome.
     Quando a menina fez dezoito anos, seus pais mandaram trazer de longe uma caixa repleta de palavras em árabe. A menina quase transbordou de felicidade. Saboreou letrinha por letrinha até não haver mais nada. Só de pirraça, passou o resto da semana falando árabe.
     E assim os anos foram passando. A menina virou mulher e se apaixonou por um poeta. Ele a cortejava com as mais belas das palavras e foi irresistível para a menina, para quem as mesma já vinham, devagarzinho, perdendo um pouco do seu brilho.
     Foi uma festa de dar gosto. As músicas eram só as que tinham as letras mais bonitas e os votos dos noivos mesmerizaram a todos que compareceram. Os pais da menina estavam especialmente felizes. Ela não podia ter arranjado homem melhor, o poeta iria mantê-la sempre cheia de palavras e eles não precisariam mais se preocupar com ela os deixando sem nada.
     Os primeiros anos do casamento foram os mais felizes da vida dos dois. A menina decorou a pequena cabana em que foram morar com suas palavras favoritas, o poeta sempre tentava voltar para casa com uma surpresinha, um indubitavelmente ou um chatoyant. A menina servia de inspiração para o poeta e o poeta parecia ser o único capaz de suprir o desejo insaciável da menina por palavras.
     Mas o tempo passou. Com o apetite da menina crescendo exponencialmente e sem dar sinal de que iria estagnar, o poeta foi deixando de escrever, pois todas suas palavras tinham que ir para a menina. Ela não dizia, mas vivia sempre com fome. Não queria magoar seu amado, que já estava entristecido por quase nada escrever.
     E a menina emagrecia e emagrecia enquanto o poeta fazia de tudo para arranjar novas palavras. Eles quase não conversavam mais, pois a menina já tinha comido a maioria dos substantivos e boa parte dos verbos. Fazia força para não engolir certas palavras, pois sabia que sem elas não conseguiria viver.
Era irônico como ela podia amar tanto as palavras, a ponto de precisar delas para viver, mas ser capaz de destruí-las uma por uma, fazendo as sumir dentro do seu ser, até não sobrar quase nada.
     Quanto mais magra ela ficava, mais a tristeza na casa aumentava. Os dois pararam de sair, com medo de que, se encontrassem com alguém, a menina engolisse todas as palavras do passante de uma vez. Não queriam causar problema.
     A menina percebeu que, na verdade, aquilo era mais uma maldição do que um dom. Para que poder viver de palavras quando a sua existência só privava o mundo delas?
     O poeta tentou de tudo. Mandou vir palavras do Japão, da Rússia e de Israel. Até não haver mais nenhuma língua cujas palavras a menina já não tinha provado. Seu desespero aumentava ao ver aquela mulher magrinha comendo um Tolstoi de uma dentada só.
     Sem mais alternativas, os dois aceitaram que não havia nada mais a ser feito. A menina foi ficando doente. Como era o único remédio que a poderia fazer melhorar, o poeta oferecia cada dia uma de suas mais prezadas e últimas palavras.
     Uma tarde, sem nem poder mais abrir a boca, a menina disse com os olhos que sua hora havia chegado. O poeta entendeu e lhe disse, com lágrimas escorrendo:
     - Eu te amo.
     Os lábios da menina se separaram levemente e ela engoliu aquelas palavras. Teve certeza de que eram as mais deliciosas que já tinha provado. E, após um último suspiro, a menina que vivia de palavras morreu, com um sorriso no rosto e as palavras do poeta no coração.”

Delicioso, não é mesmo? Não fica um sabor de “quero-mais”? Ok, chega dos trocadilhos que já estão ficando infames. Vamos fechar essa postagem com um pedido geral para a Rafaella: Mocinha, novos contos devem ser escritos para alimentar nossa fome de boas histórias. Considero que isso foi só um aperitivo. Espero que, em breve, você nos presenteie com uma nova fornada, quentinha. (Ok, ok. Agora eu parei mesmo com os trocadilhos.)

Rafinha, muito obrigada pela inspiração!

E, para quem quiser entrar em contato com ela, procurem-na no Facebook: Rafaella Litvin.

Bom, ficamos por aqui. 

Obrigada a quem estiver acompanhando.

Até mais! =D

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Lutar com palavras é a luta mais vã

Marcando o retorno desse blog, que estava praticamente morto, eu trago as linhas muitíssimo bem escritas da aluna Amanda Marchi. De fato, antes de este blog ter entrado em hiatus, seria dela o próximo texto a ser comentado. Nada mais justo que seguir com o planejado.

A Amanda é daquelas alunas que leem muito. Daquele tipo que os pais incentivaram a ler, desde quando era criança. Eu acredito que os pais têm muita participação no gosto pela leitura que seus filhos desenvolvem. Muitas vezes, é graças às histórias contadas na hora de dormir, aos livros dados como presentes de aniversário, de Natal, de dia das crianças, que a magia começa. Não é assim tão difícil. A literatura, por si só, já é apaixonante. Mas se houver um empurrãozinho desse tipo, ainda melhor.

A Amanda devora livros e sabe extrair deles o que eles têm para oferecer. Os livros carregam muito mais que histórias; carregam vivências, pensamentos, sentimentos... Há quem leia e goste de um livro pela sua primeira superfície, que é aquilo que as linhas literalmente trazem: palavras que contam uma história, qualquer que seja ela. Apenas isso já é o suficiente para transformar um eventual leitor em um apaixonado inveterado pelo mundo das letras.

Entretanto, há aqueles que vão além. Não satisfeitos em se alimentar das palavras de outrem, sentem a necessidade de criar as suas próprias. Sim; criar suas próprias palavras. As palavras existem, como já dizia Drummond, “em estado de dicionário”. E estão ali, como dizia o poeta, imóveis, no reino das palavras, apenas aguardando que alguém lhes apareça, trazendo a chave correta, para fazer com que elas se tornem suas.

É isso o que um escritor faz. Ele torna as palavras suas. Ele as cria, ou recria, para utilizá-las do modo que melhor lhe aprouver.

Não é tarefa fácil. Não; definitivamente, é um trabalho árduo. Novamente, Drummond se mostra profundo conhecedor dessas que são capazes de encantar, mas dificílimas de se capturar: “Lutar com palavras é a luta mais vã / Entanto lutamos / mal rompe a manhã / São muitas, eu pouco” (...). 

Encantador de palavras; essa é a definição de escritor. Criar palavras (ou recriá-las, como preferirem) para seu uso próprio é tarefa que, por vezes, parece infrutífera. Não só pela dificuldade encerrada nela, mas porque, ao cabo, é comum ao seu autor a impressão de que o resultado alcançado não foi o almejado.
E quantas vezes alguém não quis se expressar com palavras e, por mais que se esmerasse, não conseguisse? Quantas vezes as palavras não pareceram morrer na língua e, ao ganharem o mundo, viram-se subitamente desprovidas de todo o significado que deveriam carregar? Inócuas, vazias. A impressão que se tinha, ao escrevê-las, era de que elas transmitiriam o desejado. Por que então vem aquela sensação de que não foi o que era para ter sido?

Eu acredito que um escritor de verdade sempre tem a impressão do inacabado. Do “podia ter ficado melhor”. Do “ainda não foi bem o que eu queria dizer”. Do “vou tentar mais uma vez, para ver se agora vai”. E acredito que esses pensamentos são quase sempre inconscientes. Mas creio que, mesmo não cientes deles, eles existem. Afinal, pela minha visão, o que leva um escritor a continuar escrevendo é sua eterna necessidade de se expressar. Por vezes, eles se desdobrará em torno do mesmo tema. É sua tentativa de “fazer melhor”.
Isso não quer dizer que um escritor desvalorize o que produz. Definitivamente, não quer dizer que ele desgoste do que fez. Pelo contrário, penso que a maioria fique satisfeita o bastante com o resultado, a ponto de querer publicar seu trabalho, como, de fato, ocorre. Porém, também acho que se incomodem o suficiente para não se acomodarem.

Faz sentido para mim. No dia em que sentirem que atingiram tudo o que gostariam como escritores, tornando-se verdadeiros magos da palavra, encantando-as e recriando-as magistralmente, sem qualquer dificuldade... bem, acho que é aí que ele termina o trabalho de um escritor. 

É certo que essa é uma visão minha. É particular, é subjetiva. Ninguém precisa concordar com ela.
Mas eu acho que a Amanda vai concordar. Ela possui um blog em que se podem encontrar muitos textos e é visível que a necessidade de escrever, para ela, é algo que vem do seu âmago, das entranhas, é algo visceral. E é fácil perceber que a cada linha ela se supera, continuamente.

Isso só ocorre com aqueles que querem crescer com as palavras, dominando-as ao mesmo tempo em que se é dominado por elas. É um jogo, um desafio, uma disputa. As palavras contra o seu autor. Os que as escrevem costumam ser vencidos. E, quanto mais perdemos, quanto mais somos subjugados por elas, maior o nosso desejo de iniciar nova – e prazerosa – batalha.

A Amanda está em uma dessas intermináveis batalhas, para a nossa sorte. Seus escritos são um verdadeiro primor. Com que cuidado e habilidade ela narra, desvenda, encobre e revela. É um trabalho que dá orgulho de ver! Claro que não poderia esperar algo diferente de uma jovem que, aos 15 anos, ganhou diversos livros como presentes e que já foi bem apresentada a Tolstói e Dostoiévski. Sua bagagem literária não é pequena e seus contos demonstram apenas que ela soube apreciar e absorver o melhor de cada obra que passou pelas suas mãos.

Uma das coisas de que mais gostei em um de seus contos foi que, na primeira vez em que eu o li, há alguns dias, tive uma impressão, causada pelo fato de não saber aonde aquela história iria me levar. Deixei-me guiar e o narrador me era um desconhecido que me causava sentimentos difusos e confusos. Hoje, contudo, lendo-o novamente e sabendo aonde eu iria chegar, o narrador era diferente. Era alguém conhecido, mas que ainda me instigava. E eu pude ler suas palavras com outra visão. Foi quase como descobrir a história novamente e, assim, ela ganhou novo sabor.

Eu gosto muito de narrativas assim, que a cada leitura, parecem se transfigurar.

As palavras da Amanda garantem esse efeito. E isso não é simples de se realizar. É obra de quem já tem afinidade com as palavras, de alguém que já conhece o jogo delas e que, depois de tantas batalhas, já aprendeu a ditar algumas regras desse jogo. A forma como ela trabalha a palavra, como a submete à sua vontade, faz que tenhamos a sensação de que ela escolheu aquela palavra para ser usada e, embora não fosse do desejo da palavra caber naquela frase, em que seu sentido usual não lhe permitiria o espaço adequado, Amanda fez-se forte, sua vontade prevaleceu e a palavra curvou-se à sua ordem. No entanto, momentos seguintes, encontramos a reviravolta da palavra, que parece pegar sua autora desprevenida e, assim, a própria Amanda se vê escrevendo de uma forma em que nem ela parece entender como aquelas linhas lhe saltaram das mãos.

Essa percepção é sutil, mas Amanda saberá reconhecer esses momentos, assim como qualquer pessoa que também já se tenha aventurado pelo reino das palavras. Há momentos, quando escrevemos, em que nos sentimos no controle. As palavras nos obedecem, tudo faz sentido dentro daquilo que eventualmente planejamos para povoar a folha em branco. Todavia, qual não é a nossa surpresa quando, de repente, frases inteiras, parágrafos completos e até mesmo folhas inteiramente preenchidas nos surgem sem que saibamos como! As palavras parecem ir brotando, sem nosso comando. E, ao término desses momentos, ficamos em êxtase! Que belas palavras... 

Mas, logo em seguida, o gosto do doce amargo: não fomos nós que estivemos no controle naqueles instantes de pura inspiração... Foram elas, as palavras, que nos controlaram. O resultado não nos desagrada nem um pouco; a leve amargura que vem contrastar com a doçura de tão belo trabalho é o saber que, se desejarmos, não saberemos como alcançar esse resultado outra vez. Não foi um momento nosso, foi delas. Para que isso ocorra novamente, precisaremos esperar que elas, as palavras, queiram nos agraciar uma vez mais com sua presença e forma inusitada; tão inusitada que não sabemos quando esperá-las, tampouco como aprisioná-las.

Vai ver, é porque essa forma não se pode aprisionar, mas a verdade é que, mesmo ilusória, essa é a busca de toda jornada a que se propõe um verdadeiro escritor. Correr atrás das palavras, descobri-las, encantá-las, fazê-las suas. Tentar descobrir se é possível torná-las suas, para sempre, e talvez depois perceber algo que, em seu íntimo, sempre se soube: que isso é impossível e que as palavras existem apenas para nos atiçar, provocar e levar a combates sem fim.

Vou transcrever um conto da Amanda que me causou essas impressões. Foi-me indicado pela própria Amanda, que, por sinal, tem vários preferidos – a ponto de encaminhar diversos para concursos literários distintos e, ao vencer, sequer se recordar de qual foi o vencedor. O luxo desse esquecimento não é para qualquer um...

De toda forma, vou deixar o conto dela aqui, mas também colocarei o endereço para a página do seu blog, de modo que possam acompanhar mais de perto seus escritos e as inúmeras batalhas que ela continua a travar com as palavras, dia e noite.

Lembrem-se de torcer pelas palavras, sempre. Desse modo, Amanda continuará buscando sua vitória e, para isso, permanecerá escrevendo por muito, muito tempo...


“Medo

Deveria ter sido o melhor dia da minha vida, mas não foi. E não tenho ninguém a culpar além de mim mesmo.
Apesar de querer culpá-la com todas as minhas forças, não consigo.
O quarto é pequeno. A sensação térmica é tão baixa que consigo ver o ar gélido saindo por entre meus lábios toda vez que me atrevo a respirar. E, ainda assim, encontro-me descalço no mármore, o torso nu.
Uma punição, eu diria. O frio me abraçava neste final de tarde, como muitas vezes eu já a abracei. Ambas, na verdade.
Virando o rosto, meus olhos encontraram a janela embaçada, distorcendo minha imagem. Já não reconhecia o homem que estava ali refletido. Ele não se assemelha em nada com o homem que eu era.
Podia ver o rosto dela. Aquela face serena que, com apenas algumas palavras, se contorceram até se transformarem em algo que não pude entender. Na verdade, era algo que eu entendia... E entendia tão bem que não sabia que era possível que ela pudesse sentir o mesmo. Dor.
Ela não disse nada, apenas encarou-me com seus olhos castanhos, e afastou-se logo em seguida. Com as mãos nos bolsos do casaco, apertei com força a caixa onde jazia o anel que era para fazê-la minha, para sempre.
Mordi o lábio inferior, passando uma das mãos no peito. Do lado esquerdo, mais especificamente. Meu coração estava acelerado, confuso. Como ele podia sentir uma coisa, mas a boca fazer outra completamente diferente?
Não entendia o que tinha acontecido. Preciso dela. Eu acho.
Levantei-me, andando no pequeno espaço que tinha. Memórias começaram a vir à tona, dando-me uma pontada no estômago. Parei, olhando para um ponto fixo na parede. Não sabia, realmente não sabia dizer. Eu a amava? Ou havia me enganado este tempo todo? Às vezes parece que amo... Às vezes parece tanto que amo que a vontade de abraçá-la e nunca mais soltá-la fala mais alto do que a razão. Outras... Já não tenho tanta convicção.
Fechei os olhos, respirando fundo. Vasculhei tudo que já passamos, bem no fundo, à procura daquele sentimento. Tentei sentir seu toque, sua respiração ao meu lado, o perfume de seu corpo... Abrindo-os novamente, já sabia quem estaria à minha frente.
Ela estava parada no portal da porta, de braços cruzados, sorrindo para mim. Um sorriso maldoso.
- Sai daqui. – ela continuou parada, seus cabelos, nem castanhos nem loiros, balançando ao vento da janela aberta. Ela sorriu. – VÁ EMBORA.
Agarrei o vaso de flor de cima da mesa, arremessando-o em sua direção. Não sei o que eu esperava que acontecesse. Ele apenas bateu na porta, espatifando-se. Não tem como acertar alguém que já morreu.
Comecei a tremer, mas não por causa do frio. Ela continuava ali, sorrindo e olhando em minha direção. Aquilo era tortura... Ela estar ali, sem falar nada, sem eu poder tocá-la... Era tortura.
Escorreguei pela parede, sentando-me no chão. O coração acelerado, o corpo tremendo. Em minhas mãos jazia a caixa de veludo, que deveria ter garantido que aquele seria o melhor dia da minha vida. Mas ela estragou tudo, mais uma vez.
Olhei para ela, que também havia se sentado na parede defronte. Seu rosto estava sereno. Sua beleza continuava como eu lembrava.
Meu coração desacelerou, gradualmente; o lugar não parecia mais tão frio, mesmo com a janela ainda aberta; minha respiração estava normal e um calor se espalhava pelo meu peito.
Ela sorriu. E eu entendi o que havia acontecido àquela tarde.
Eu a amava, e somente a ela, não podia me enganar.
Por um momento senti como se tudo fizesse sentido, mas por apenas um momento, pois logo lembrei que ela continuava morta.
Os batimentos cardíacos aceleraram novamente, e ela sorriu. O mesmo sorriso maligno de antes. O pânico se apoderou de mim. Minhas mãos começaram a suar e lágrimas a caírem, involuntárias, de meus olhos. Fazia força com as pernas, como tentando me afastar o máximo possível da imagem daquela mulher, mas apenas forçava minhas costas contra a parede.
Ela estava ali para garantir que o meu maior medo se concretizasse. O medo de que eu nunca amaria ninguém do modo que eu a amei.”

Visitem o blog da Amanda: http://www.heygodsavethequeen.blogspot.com.br/2011/07/medo.html (nessa página está o conto aqui transcrito). Leiam, aproveitem e usufruam sem moderação!

Se quiserem entrar em contato com ela, tentem pelo twitter: @amandsporra.

Obrigada pela inspiração, Amanda.

E obrigada também a quem se dispôs a passar por aqui! Espero manter esse blog vivo!
Até a próxima! =)