segunda-feira, 2 de abril de 2012

Lutar com palavras é a luta mais vã

Marcando o retorno desse blog, que estava praticamente morto, eu trago as linhas muitíssimo bem escritas da aluna Amanda Marchi. De fato, antes de este blog ter entrado em hiatus, seria dela o próximo texto a ser comentado. Nada mais justo que seguir com o planejado.

A Amanda é daquelas alunas que leem muito. Daquele tipo que os pais incentivaram a ler, desde quando era criança. Eu acredito que os pais têm muita participação no gosto pela leitura que seus filhos desenvolvem. Muitas vezes, é graças às histórias contadas na hora de dormir, aos livros dados como presentes de aniversário, de Natal, de dia das crianças, que a magia começa. Não é assim tão difícil. A literatura, por si só, já é apaixonante. Mas se houver um empurrãozinho desse tipo, ainda melhor.

A Amanda devora livros e sabe extrair deles o que eles têm para oferecer. Os livros carregam muito mais que histórias; carregam vivências, pensamentos, sentimentos... Há quem leia e goste de um livro pela sua primeira superfície, que é aquilo que as linhas literalmente trazem: palavras que contam uma história, qualquer que seja ela. Apenas isso já é o suficiente para transformar um eventual leitor em um apaixonado inveterado pelo mundo das letras.

Entretanto, há aqueles que vão além. Não satisfeitos em se alimentar das palavras de outrem, sentem a necessidade de criar as suas próprias. Sim; criar suas próprias palavras. As palavras existem, como já dizia Drummond, “em estado de dicionário”. E estão ali, como dizia o poeta, imóveis, no reino das palavras, apenas aguardando que alguém lhes apareça, trazendo a chave correta, para fazer com que elas se tornem suas.

É isso o que um escritor faz. Ele torna as palavras suas. Ele as cria, ou recria, para utilizá-las do modo que melhor lhe aprouver.

Não é tarefa fácil. Não; definitivamente, é um trabalho árduo. Novamente, Drummond se mostra profundo conhecedor dessas que são capazes de encantar, mas dificílimas de se capturar: “Lutar com palavras é a luta mais vã / Entanto lutamos / mal rompe a manhã / São muitas, eu pouco” (...). 

Encantador de palavras; essa é a definição de escritor. Criar palavras (ou recriá-las, como preferirem) para seu uso próprio é tarefa que, por vezes, parece infrutífera. Não só pela dificuldade encerrada nela, mas porque, ao cabo, é comum ao seu autor a impressão de que o resultado alcançado não foi o almejado.
E quantas vezes alguém não quis se expressar com palavras e, por mais que se esmerasse, não conseguisse? Quantas vezes as palavras não pareceram morrer na língua e, ao ganharem o mundo, viram-se subitamente desprovidas de todo o significado que deveriam carregar? Inócuas, vazias. A impressão que se tinha, ao escrevê-las, era de que elas transmitiriam o desejado. Por que então vem aquela sensação de que não foi o que era para ter sido?

Eu acredito que um escritor de verdade sempre tem a impressão do inacabado. Do “podia ter ficado melhor”. Do “ainda não foi bem o que eu queria dizer”. Do “vou tentar mais uma vez, para ver se agora vai”. E acredito que esses pensamentos são quase sempre inconscientes. Mas creio que, mesmo não cientes deles, eles existem. Afinal, pela minha visão, o que leva um escritor a continuar escrevendo é sua eterna necessidade de se expressar. Por vezes, eles se desdobrará em torno do mesmo tema. É sua tentativa de “fazer melhor”.
Isso não quer dizer que um escritor desvalorize o que produz. Definitivamente, não quer dizer que ele desgoste do que fez. Pelo contrário, penso que a maioria fique satisfeita o bastante com o resultado, a ponto de querer publicar seu trabalho, como, de fato, ocorre. Porém, também acho que se incomodem o suficiente para não se acomodarem.

Faz sentido para mim. No dia em que sentirem que atingiram tudo o que gostariam como escritores, tornando-se verdadeiros magos da palavra, encantando-as e recriando-as magistralmente, sem qualquer dificuldade... bem, acho que é aí que ele termina o trabalho de um escritor. 

É certo que essa é uma visão minha. É particular, é subjetiva. Ninguém precisa concordar com ela.
Mas eu acho que a Amanda vai concordar. Ela possui um blog em que se podem encontrar muitos textos e é visível que a necessidade de escrever, para ela, é algo que vem do seu âmago, das entranhas, é algo visceral. E é fácil perceber que a cada linha ela se supera, continuamente.

Isso só ocorre com aqueles que querem crescer com as palavras, dominando-as ao mesmo tempo em que se é dominado por elas. É um jogo, um desafio, uma disputa. As palavras contra o seu autor. Os que as escrevem costumam ser vencidos. E, quanto mais perdemos, quanto mais somos subjugados por elas, maior o nosso desejo de iniciar nova – e prazerosa – batalha.

A Amanda está em uma dessas intermináveis batalhas, para a nossa sorte. Seus escritos são um verdadeiro primor. Com que cuidado e habilidade ela narra, desvenda, encobre e revela. É um trabalho que dá orgulho de ver! Claro que não poderia esperar algo diferente de uma jovem que, aos 15 anos, ganhou diversos livros como presentes e que já foi bem apresentada a Tolstói e Dostoiévski. Sua bagagem literária não é pequena e seus contos demonstram apenas que ela soube apreciar e absorver o melhor de cada obra que passou pelas suas mãos.

Uma das coisas de que mais gostei em um de seus contos foi que, na primeira vez em que eu o li, há alguns dias, tive uma impressão, causada pelo fato de não saber aonde aquela história iria me levar. Deixei-me guiar e o narrador me era um desconhecido que me causava sentimentos difusos e confusos. Hoje, contudo, lendo-o novamente e sabendo aonde eu iria chegar, o narrador era diferente. Era alguém conhecido, mas que ainda me instigava. E eu pude ler suas palavras com outra visão. Foi quase como descobrir a história novamente e, assim, ela ganhou novo sabor.

Eu gosto muito de narrativas assim, que a cada leitura, parecem se transfigurar.

As palavras da Amanda garantem esse efeito. E isso não é simples de se realizar. É obra de quem já tem afinidade com as palavras, de alguém que já conhece o jogo delas e que, depois de tantas batalhas, já aprendeu a ditar algumas regras desse jogo. A forma como ela trabalha a palavra, como a submete à sua vontade, faz que tenhamos a sensação de que ela escolheu aquela palavra para ser usada e, embora não fosse do desejo da palavra caber naquela frase, em que seu sentido usual não lhe permitiria o espaço adequado, Amanda fez-se forte, sua vontade prevaleceu e a palavra curvou-se à sua ordem. No entanto, momentos seguintes, encontramos a reviravolta da palavra, que parece pegar sua autora desprevenida e, assim, a própria Amanda se vê escrevendo de uma forma em que nem ela parece entender como aquelas linhas lhe saltaram das mãos.

Essa percepção é sutil, mas Amanda saberá reconhecer esses momentos, assim como qualquer pessoa que também já se tenha aventurado pelo reino das palavras. Há momentos, quando escrevemos, em que nos sentimos no controle. As palavras nos obedecem, tudo faz sentido dentro daquilo que eventualmente planejamos para povoar a folha em branco. Todavia, qual não é a nossa surpresa quando, de repente, frases inteiras, parágrafos completos e até mesmo folhas inteiramente preenchidas nos surgem sem que saibamos como! As palavras parecem ir brotando, sem nosso comando. E, ao término desses momentos, ficamos em êxtase! Que belas palavras... 

Mas, logo em seguida, o gosto do doce amargo: não fomos nós que estivemos no controle naqueles instantes de pura inspiração... Foram elas, as palavras, que nos controlaram. O resultado não nos desagrada nem um pouco; a leve amargura que vem contrastar com a doçura de tão belo trabalho é o saber que, se desejarmos, não saberemos como alcançar esse resultado outra vez. Não foi um momento nosso, foi delas. Para que isso ocorra novamente, precisaremos esperar que elas, as palavras, queiram nos agraciar uma vez mais com sua presença e forma inusitada; tão inusitada que não sabemos quando esperá-las, tampouco como aprisioná-las.

Vai ver, é porque essa forma não se pode aprisionar, mas a verdade é que, mesmo ilusória, essa é a busca de toda jornada a que se propõe um verdadeiro escritor. Correr atrás das palavras, descobri-las, encantá-las, fazê-las suas. Tentar descobrir se é possível torná-las suas, para sempre, e talvez depois perceber algo que, em seu íntimo, sempre se soube: que isso é impossível e que as palavras existem apenas para nos atiçar, provocar e levar a combates sem fim.

Vou transcrever um conto da Amanda que me causou essas impressões. Foi-me indicado pela própria Amanda, que, por sinal, tem vários preferidos – a ponto de encaminhar diversos para concursos literários distintos e, ao vencer, sequer se recordar de qual foi o vencedor. O luxo desse esquecimento não é para qualquer um...

De toda forma, vou deixar o conto dela aqui, mas também colocarei o endereço para a página do seu blog, de modo que possam acompanhar mais de perto seus escritos e as inúmeras batalhas que ela continua a travar com as palavras, dia e noite.

Lembrem-se de torcer pelas palavras, sempre. Desse modo, Amanda continuará buscando sua vitória e, para isso, permanecerá escrevendo por muito, muito tempo...


“Medo

Deveria ter sido o melhor dia da minha vida, mas não foi. E não tenho ninguém a culpar além de mim mesmo.
Apesar de querer culpá-la com todas as minhas forças, não consigo.
O quarto é pequeno. A sensação térmica é tão baixa que consigo ver o ar gélido saindo por entre meus lábios toda vez que me atrevo a respirar. E, ainda assim, encontro-me descalço no mármore, o torso nu.
Uma punição, eu diria. O frio me abraçava neste final de tarde, como muitas vezes eu já a abracei. Ambas, na verdade.
Virando o rosto, meus olhos encontraram a janela embaçada, distorcendo minha imagem. Já não reconhecia o homem que estava ali refletido. Ele não se assemelha em nada com o homem que eu era.
Podia ver o rosto dela. Aquela face serena que, com apenas algumas palavras, se contorceram até se transformarem em algo que não pude entender. Na verdade, era algo que eu entendia... E entendia tão bem que não sabia que era possível que ela pudesse sentir o mesmo. Dor.
Ela não disse nada, apenas encarou-me com seus olhos castanhos, e afastou-se logo em seguida. Com as mãos nos bolsos do casaco, apertei com força a caixa onde jazia o anel que era para fazê-la minha, para sempre.
Mordi o lábio inferior, passando uma das mãos no peito. Do lado esquerdo, mais especificamente. Meu coração estava acelerado, confuso. Como ele podia sentir uma coisa, mas a boca fazer outra completamente diferente?
Não entendia o que tinha acontecido. Preciso dela. Eu acho.
Levantei-me, andando no pequeno espaço que tinha. Memórias começaram a vir à tona, dando-me uma pontada no estômago. Parei, olhando para um ponto fixo na parede. Não sabia, realmente não sabia dizer. Eu a amava? Ou havia me enganado este tempo todo? Às vezes parece que amo... Às vezes parece tanto que amo que a vontade de abraçá-la e nunca mais soltá-la fala mais alto do que a razão. Outras... Já não tenho tanta convicção.
Fechei os olhos, respirando fundo. Vasculhei tudo que já passamos, bem no fundo, à procura daquele sentimento. Tentei sentir seu toque, sua respiração ao meu lado, o perfume de seu corpo... Abrindo-os novamente, já sabia quem estaria à minha frente.
Ela estava parada no portal da porta, de braços cruzados, sorrindo para mim. Um sorriso maldoso.
- Sai daqui. – ela continuou parada, seus cabelos, nem castanhos nem loiros, balançando ao vento da janela aberta. Ela sorriu. – VÁ EMBORA.
Agarrei o vaso de flor de cima da mesa, arremessando-o em sua direção. Não sei o que eu esperava que acontecesse. Ele apenas bateu na porta, espatifando-se. Não tem como acertar alguém que já morreu.
Comecei a tremer, mas não por causa do frio. Ela continuava ali, sorrindo e olhando em minha direção. Aquilo era tortura... Ela estar ali, sem falar nada, sem eu poder tocá-la... Era tortura.
Escorreguei pela parede, sentando-me no chão. O coração acelerado, o corpo tremendo. Em minhas mãos jazia a caixa de veludo, que deveria ter garantido que aquele seria o melhor dia da minha vida. Mas ela estragou tudo, mais uma vez.
Olhei para ela, que também havia se sentado na parede defronte. Seu rosto estava sereno. Sua beleza continuava como eu lembrava.
Meu coração desacelerou, gradualmente; o lugar não parecia mais tão frio, mesmo com a janela ainda aberta; minha respiração estava normal e um calor se espalhava pelo meu peito.
Ela sorriu. E eu entendi o que havia acontecido àquela tarde.
Eu a amava, e somente a ela, não podia me enganar.
Por um momento senti como se tudo fizesse sentido, mas por apenas um momento, pois logo lembrei que ela continuava morta.
Os batimentos cardíacos aceleraram novamente, e ela sorriu. O mesmo sorriso maligno de antes. O pânico se apoderou de mim. Minhas mãos começaram a suar e lágrimas a caírem, involuntárias, de meus olhos. Fazia força com as pernas, como tentando me afastar o máximo possível da imagem daquela mulher, mas apenas forçava minhas costas contra a parede.
Ela estava ali para garantir que o meu maior medo se concretizasse. O medo de que eu nunca amaria ninguém do modo que eu a amei.”

Visitem o blog da Amanda: http://www.heygodsavethequeen.blogspot.com.br/2011/07/medo.html (nessa página está o conto aqui transcrito). Leiam, aproveitem e usufruam sem moderação!

Se quiserem entrar em contato com ela, tentem pelo twitter: @amandsporra.

Obrigada pela inspiração, Amanda.

E obrigada também a quem se dispôs a passar por aqui! Espero manter esse blog vivo!
Até a próxima! =)