domingo, 3 de outubro de 2021

Uma autora e suas essências

 Tudo começou quando, algumas semanas atrás, em uma tarde como outra qualquer, Marília veio até o meu plantão e disse que gostaria de me mostrar uma redação que estava escrevendo. As questões que ela trazia sobre o texto eram relacionadas a aspectos mais literários e eu logo me demonstrei interessada no que ela tinha para apresentar.

A redação ainda não estava concluída, justamente porque a Marília tinha dúvidas sobre os caminhos a seguir. Comecei a ler e rapidamente me senti capturada pela narrativa que trazia mistérios não propriamente na história, mas no uso inteligente e cheio de possibilidades que ela esmiuçava. Por trás da narrativa aparente havia outra, latente. E isso me motivou a querer concluir a leitura logo, para saber aonde todas aquelas palavras poderiam me levar...

Porém, o texto não estava finalizado. Marília me explicou que as possibilidades que eu enxerguei não eram aleatórias; ela realmente estava plantando esses diversos caminhos que, por mais que abrissem novos rumos, terminavam por, de certa forma, desembocar em uma mesma ideia. Tudo muito bem construído, bem amarrado. Achei interessante, disse a ela que gostaria de ver o texto concluído e elogiei sua escrita.

Entretanto, eu ainda não li o final dessa história (mas gostaria muito de ver algum dia, viu, Marília?😆). O que ocorreu, por outro lado, foi ainda mais empolgante. A Marília começou a me mostrar um lado seu que, verdade seja dita, não me surpreendeu, porque era simplesmente natural seu potencial como escritora. Mas me deixou muito feliz que ela passasse a compartilhar seus versos e poemas comigo, permitindo que eu tomasse conhecimento real das dimensões que essa garota, tão jovem, já é capaz de alcançar em meio às letras.

Aliás, é importante ressaltar como seus versos demonstram sua familiaridade com as palavras. Marília se sente muito à vontade com elas. E isso se reflete em sua forma de escrever, em seu estilo, que já se delineia bem no que tem a dizer.

Por sinal, um detalhe interessante. Quem lê os poemas da Marília pode perceber que existem ali outros autores. Marília, às vezes, dá espaço a outros escritores que, segundo ela, habitam sua essência escritora. Algo como... os heterônimos de Fernando Pessoa? Quem sabe?

Aqui, transcrevo os versos de um poema que a própria Marília selecionou para que eu publicasse neste blog. Ela me disse que, neste caso, a autora é ela mesma, em sua própria essência criativa:

 

“Com licença, meu senhor!
Será que posso roubar
um pouco desse esplendor
com notícias de um Brasil
sem amor?

Por favor, meu senhor!
Será que posso pegar emprestado
de um velho soldado,
não o fuzil,
mas os tempos de sonhos
de um esquecido Brasil?

Dá licença, meu senhor!
Será que posso pegar emprestado
o medo escancarado
de um povo assustado,
com medo de ser calado?

Quero pegar emprestado
as fobias e mágoas
e transformá-las em
calçados surrados
amarrados em postes
quase tombados.

Quero transformar os sapatos
em alguns relatos
de anonimatos
sobre maus-tratos.

Quero transformar o abuso
em algo não tão difuso,
em algo muito excluso
e não algo que herdamos dos lusos.

Quero transformar
os choros de fome
daqueles que já a tem
como sobrenome
em choros de notas,
não em choros de covas.


- M. N. N.

 

Uma das funções da Literatura é a de denunciar, fazer críticas sociais, possibilitar reflexões. Devido a essa função, acredito ser válido que o óbvio seja tornado óbvio para que não restem dúvidas quanto ao se que se deve dizer; porém, nada impede alguns jogos de palavras, significados a mais, algumas ideias nas entrelinhas... isso também enriquece o texto, desafia seu leitor.

Aqui, a Marília (em um estilo diferente de um outro escritor que habita nela e que aparece com frequência na sua página de poesia do Instagram) é bem direta dentro de suas intenções, apontando para a situação crítica de um país necessitado de atenção.

Nesse poema, seus versos conseguem trazer ritmo poético a falas que permeiam noticiários, representando angústias, clamores...

Contudo, quando se lê:

“Quero pegar emprestado
as fobias e mágoas
e transformá-las em
calçados surrados
amarrados em postes
quase tombados.

Marília volta a provocar seus leitores, desafiando-os.

Como assim, transformar fobias e mágoas em “calçados surrados amarrados em postes"?

Nesse momento, uma imagem logo me vem à mente.

É comum ver, em grandes cidades, pares de tênis jogados sobre os fios de alta tensão, amarrados e largados ali.

Definitivamente, esses versos podem nem estar fazendo alusão a isso. Mesmo assim, por terem se tornado imediatamente a imagem em que essas palavras se materializaram para mim, ficou difícil me desvencilhar dela.

E não acho que isso faça muita diferença. Até consigo perceber outras nuances, possíveis novas leituras a partir de alguns outros significados também plausíveis. No entanto, vou aqui me ater apenas a essa primeira leitura que fiz, porque foi muito poderosa para mim e causou-me esse impacto que, neste blog, é o que mais gosto de compartilhar. Mas, creio que valha destacar que, mesmo dentro dessas outras leituras que também consegui fazer, o sentido geral do texto não se modifica. Eis a beleza da literatura.

Para mim, o que me gerou essa sensação de espanto mesclada com admiração foi ler essa alusão aos calçados amarrados e jogados sobre esses fios e postes e saber que esses calçados, nesse estado, têm muito mais significado do que muita gente pensa. Por ser um hábito muito comum em vários países, há estudos sobre o símbolo por trás desse gesto (de atirar calçados sobre os postes) e, dentre tantos, há os de servirem para demarcar territórios e servirem como ameaça... assim como também podem representar o bullying.

É como se, após retratar a situação crítica em que tantos se encontram, o eu lírico do texto deseje traçar uma linha, um limite, como um basta, como se demarcasse até onde é possível suportar tudo isso.

Então, na estrofe seguinte, lê-se:


“Quero transformar os sapatos

em alguns relatos
de anonimatos
sobre maus-tratos.

Aqui, cabe tão bem o sentido de perseguição e covardia, também relacionado aos tênis jogados sobre os postes, que eu dificilmente consegui dar atenção a outra leituras aí também inseridas.

Mas é claro que a interpretação mais abrangente é bem-vinda, como nos versos:


“Quero transformar o abuso

em algo não tão difuso,
em algo muito excluso
e não algo que herdamos dos lusos.

Estamos falando de abusos, maus-tratos, injustiças que vão muito além do apenas óbvio. Abrangendo possibilidades, o eu lírico apresenta sua meta: que o abuso não seja tão vago, pois embora ele possa englobar essas possibilidades aqui no texto, na vida real ele deve ser encarado com objetividade, para que enfim seja excluído e deixado de fora das marcas antes delimitadas.

Por fim, em um trocadilho simples e, por isso mesmo, eficaz e impactante, o eu lírico afirma:

“Quero transformar
os choros de fome
daqueles que já a têm
como sobrenome
em choros de notas,
não em choros de covas.


O choro que se deseja ouvir deve ser apenas aquele carregado por notas musicais (o chorinho), e não o que é marcado por dor, pranto e lágrimas. Não o choro que marca a fome, que se torna mais característico do que o próprio sobrenome dessas pessoas famintas. Não o choro que se derrama apenas para marcar o fim. É preciso transformar, mudar. É fazer da poesia, ponte. E Marília está traçando aqui belíssima travessia!

 

Obrigada pelas palavras, pela reflexão e pela inspiração, Marília!!💓

 

Conheçam mais da poesia dessa incrível escritora! Ela tem uma página no Instagram direcionada a publicação de seus versos! Acompanhem; vale muito a pena!!! 😍

@marilia_2005

 

E eu sigo por aqui, firme e forte! Na próxima postagem, vou falar a respeito de um conto excepcional, que uma aluna me entregou em sala de aula, escrito em folha de caderno, dobradinho, quase como um segredo. Somente pude lê-lo depois... E que maravilhosa surpresa! Não percam... Vocês vão se maravilhar também!!

Fico por aqui, gente! Mas deixo o lembrete a alunos e ex-alunos: tem algum texto literário que queira me mostrar? É só entrar em contato! Manda uma mensagem privada pelo meu Instagram: @camilla.yoshico

Aguardo vocês!! 😘

 

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