Tudo começou quando, algumas semanas atrás, em uma tarde como outra qualquer, Marília veio até o meu plantão e disse que gostaria de me mostrar uma redação que estava escrevendo. As questões que ela trazia sobre o texto eram relacionadas a aspectos mais literários e eu logo me demonstrei interessada no que ela tinha para apresentar.
A redação ainda não
estava concluída, justamente porque a Marília tinha dúvidas sobre os caminhos a
seguir. Comecei a ler e rapidamente me senti capturada pela narrativa que trazia
mistérios não propriamente na história, mas no uso inteligente e cheio de
possibilidades que ela esmiuçava. Por trás da narrativa aparente havia outra,
latente. E isso me motivou a querer concluir a leitura logo, para saber aonde
todas aquelas palavras poderiam me levar...
Porém, o texto não estava
finalizado. Marília me explicou que as possibilidades que eu enxerguei não eram
aleatórias; ela realmente estava plantando esses diversos caminhos que, por
mais que abrissem novos rumos, terminavam por, de certa forma, desembocar em
uma mesma ideia. Tudo muito bem construído, bem amarrado. Achei interessante,
disse a ela que gostaria de ver o texto concluído e elogiei sua escrita.
Entretanto, eu ainda não li
o final dessa história (mas gostaria muito de ver algum dia, viu, Marília?😆). O
que ocorreu, por outro lado, foi ainda mais empolgante. A Marília começou a me
mostrar um lado seu que, verdade seja dita, não me surpreendeu, porque era
simplesmente natural seu potencial como escritora. Mas me deixou muito feliz
que ela passasse a compartilhar seus versos e poemas comigo, permitindo que eu
tomasse conhecimento real das dimensões que essa garota, tão jovem, já é capaz
de alcançar em meio às letras.
Aliás, é importante ressaltar como seus versos demonstram sua familiaridade com as palavras.
Marília se sente muito à vontade com elas. E isso se reflete em sua forma de
escrever, em seu estilo, que já se delineia bem no que tem a dizer.
Por sinal, um detalhe
interessante. Quem lê os poemas da Marília pode perceber que existem ali outros
autores. Marília, às vezes, dá espaço a outros escritores que, segundo ela,
habitam sua essência escritora. Algo como... os heterônimos de Fernando Pessoa?
Quem sabe?
Aqui, transcrevo os
versos de um poema que a própria Marília selecionou para que eu publicasse
neste blog. Ela me disse que, neste caso, a autora é ela mesma, em sua
própria essência criativa:
“Com licença,
meu senhor!
Será que posso roubar
um pouco desse esplendor
com notícias de um Brasil
sem amor?
Por favor, meu senhor!
Será que posso pegar emprestado
de um velho soldado,
não o fuzil,
mas os tempos de sonhos
de um esquecido Brasil?
Dá licença, meu senhor!
Será que posso pegar emprestado
o medo escancarado
de um povo assustado,
com medo de ser calado?
Quero pegar emprestado
as fobias e mágoas
e transformá-las em
calçados surrados
amarrados em postes
quase tombados.
Quero transformar os sapatos
em alguns relatos
de anonimatos
sobre maus-tratos.
Quero transformar o abuso
em algo não tão difuso,
em algo muito excluso
e não algo que herdamos dos lusos.
Quero transformar
os choros de fome
daqueles que já a tem
como sobrenome
em choros de notas,
não em choros de covas.”
- M. N. N.
Uma das funções da
Literatura é a de denunciar, fazer críticas sociais, possibilitar reflexões.
Devido a essa função, acredito ser válido que o óbvio seja tornado óbvio para
que não restem dúvidas quanto ao se que se deve dizer; porém, nada impede
alguns jogos de palavras, significados a mais, algumas ideias nas
entrelinhas... isso também enriquece o texto, desafia seu leitor.
Aqui, a Marília (em um
estilo diferente de um outro escritor que habita nela e que aparece com
frequência na sua página de poesia do Instagram) é bem direta dentro de suas
intenções, apontando para a situação crítica de um país necessitado de atenção.
Nesse poema, seus versos
conseguem trazer ritmo poético a falas que permeiam noticiários, representando angústias,
clamores...
Contudo, quando se lê:
“Quero pegar
emprestado
as fobias e mágoas
e transformá-las em
calçados surrados
amarrados em postes
quase tombados.”
Marília volta a provocar seus leitores, desafiando-os.
Como assim, transformar
fobias e mágoas em “calçados surrados amarrados em postes"?
Nesse momento, uma imagem
logo me vem à mente.
É comum ver, em grandes
cidades, pares de tênis jogados sobre os fios de alta tensão, amarrados e largados ali.
Definitivamente, esses
versos podem nem estar fazendo alusão a isso. Mesmo assim, por terem se tornado
imediatamente a imagem em que essas palavras se materializaram para mim, ficou
difícil me desvencilhar dela.
E não acho que isso faça
muita diferença. Até consigo perceber outras nuances, possíveis novas leituras
a partir de alguns outros significados também plausíveis. No entanto, vou aqui
me ater apenas a essa primeira leitura que fiz, porque foi muito poderosa para
mim e causou-me esse impacto que, neste blog, é o que mais gosto de compartilhar.
Mas, creio que valha destacar que, mesmo dentro dessas outras leituras que também
consegui fazer, o sentido geral do texto não se modifica. Eis a beleza da literatura.
Para mim, o que me gerou
essa sensação de espanto mesclada com admiração foi ler essa alusão aos calçados
amarrados e jogados sobre esses fios e postes e saber que esses calçados, nesse
estado, têm muito mais significado do que muita gente pensa. Por ser um hábito
muito comum em vários países, há estudos sobre o símbolo por trás desse gesto
(de atirar calçados sobre os postes) e, dentre tantos, há os de servirem para
demarcar territórios e servirem como ameaça... assim como também podem
representar o bullying.
É como se, após retratar
a situação crítica em que tantos se encontram, o eu lírico do texto deseje
traçar uma linha, um limite, como um basta, como se demarcasse até onde é
possível suportar tudo isso.
Então, na estrofe
seguinte, lê-se:
“Quero transformar os sapatos
em alguns relatos
de anonimatos
sobre maus-tratos.”
Aqui, cabe tão bem o
sentido de perseguição e covardia, também relacionado aos tênis jogados sobre
os postes, que eu dificilmente consegui dar atenção a outra leituras aí também
inseridas.
Mas é claro que a
interpretação mais abrangente é bem-vinda, como nos versos:
“Quero transformar o abuso
em algo não tão difuso,
em algo muito excluso
e não algo que herdamos dos lusos.”
Estamos falando de
abusos, maus-tratos, injustiças que vão muito além do apenas óbvio. Abrangendo
possibilidades, o eu lírico apresenta sua meta: que o abuso não seja tão vago, pois
embora ele possa englobar essas possibilidades aqui no texto, na vida real ele
deve ser encarado com objetividade, para que enfim seja excluído e deixado de
fora das marcas antes delimitadas.
Por fim, em um trocadilho
simples e, por isso mesmo, eficaz e impactante, o eu lírico afirma:
“Quero transformar
os choros de fome
daqueles que já a têm
como sobrenome
em choros de notas,
não em choros de covas.”
O choro que se deseja
ouvir deve ser apenas aquele carregado por notas musicais (o chorinho), e não o que é
marcado por dor, pranto e lágrimas. Não o choro que marca a fome, que se torna
mais característico do que o próprio sobrenome dessas pessoas famintas. Não o
choro que se derrama apenas para marcar o fim. É preciso transformar, mudar. É
fazer da poesia, ponte. E Marília está traçando aqui belíssima travessia!
Obrigada
pelas palavras, pela reflexão e pela inspiração, Marília!!💓
Conheçam mais da poesia
dessa incrível escritora! Ela tem uma página no Instagram direcionada a
publicação de seus versos! Acompanhem; vale muito a pena!!! 😍
@marilia_2005
E eu sigo por aqui, firme
e forte! Na próxima postagem, vou falar a respeito de um conto excepcional, que
uma aluna me entregou em sala de aula, escrito em folha de caderno, dobradinho,
quase como um segredo. Somente pude lê-lo depois... E que maravilhosa surpresa!
Não percam... Vocês vão se maravilhar também!!
Fico por aqui, gente! Mas
deixo o lembrete a alunos e ex-alunos: tem algum texto literário que queira me
mostrar? É só entrar em contato! Manda uma mensagem privada pelo meu Instagram:
@camilla.yoshico
Aguardo vocês!! 😘
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